Olhar para trás é algo mais difícil do que aparenta. O normal é a gente pensar que basta recordar e pronto. Este processo não é o problema. Ele surge quando os fatos, as datas e as pessoas começam a se misturar, criando situações e cenários bem distintos do que aconteceu mesmo. A questão é tentar discernir o que foi real e concreto, daquilo que já começamos a fantasiar e ver com os olhos do sonho. É uma garimpagem bem dura, pois, gostando ou não, a gente vai revivendo tudo de novo, o bom, o ruim, a alegria, as tristezas e o que é pior, as frustrações. Mas, tem que se seguir em frente, pois, de certa maneira há a sensação de que conseguimos corrigir algumas coisas. Pelo menos, lá dentro da gente, há uma arrumação e limpeza. Ordena-se a memória, com suas emoções e fantasias, com a diferença que nada pode ser catalogado e arquivado em fichários, não, tudo fica em ordem, mas, junto tal como aconteceu. Limpa-se a alma com essa “revivência” e fica a certeza de que tudo aconteceu porque não podia ser de outra forma.
O grupo do Central Café, no Central Hotel, na avenida Pres. Vargas, antiga 15 de Agosto, teve uma importância decisiva nos rumos da minha vida. Não que tivesse me dito o que fazer, mas, por ter me estimulado ao máximo a fazer do conhecimento uma base para pensar e agir. O meu orgulho é que fui o primeiro quase adolescente a ser aceito pelo grupo e depois, por minha influência e insistência, outros amigos passaram a freqüentar a roda. Heitor Dourado, Ramiro Bentes, Mário Sérgio, Chico Costa, André Nunes, etc., foram alguns desses amigos que passaram a ver naquela roda um importante instrumento de aprendizado. É claro que houve algo que quase justificou o meu ingresso no grupo, o fato de ter sido escolhido pela profª Maria Anunciada Chaves, diretora e professora de História do Colégio Moderno, para fazer o curso do CAPES e assim virar um professor. Foi um curso puxado, pois tinha aulas das 18 às 22 horas todo dia e aos sábados à tarde toda. Só tivemos dois feriados – o Primeiro de Maio e o Natal. Nessa época eu estava com 17 anos e isso deixou muita gente espantada. Porém, o Chico, o Ruy, o Jocelyn e o Benedito que já me conheciam de andanças políticas nacionalistas no movimento secundário achavam bem normal. E foi assim, com o status de professor de ensino médio que me credenciei para o grupo. Um grupo que, além das discussões sobre tudo (política, literatura, filosofia, sociologia e antropologia), ensinou-me o gosto pela ironia. Um gosto que até hoje perdura.
O meu ingresso no PCB foi bem interessante, pois, está vinculado a um documento de organização de um “partido” político estudantil, a Frente Nacionalista e Patriótica. Não consigo me lembrar como, mas, o citado projeto de “partido” chegou às mãos do Luiz Alfredo Oliveira, que entrou em contato comigo e sem mais nem menos, fez-me uma pergunta que não esqueci até hoje”
– Pedro, você sabe o que ‘centralismo democrático” ? É claro que a minha resposta foi negativa, pois, embora fosse um voraz leitor de toda a literatura nacionalista e até de alguns livros que falavam sobre o materialismo histórico e dialético, jamais tinha lido algo sobre a estrutura organizacional de um Partido Comunista. E o tal projeto era sem tirar nem por, quase que uma cópia simplificada dos estatutos do PCB. Foi o que soube alguns meses depois, assim que li sobre o PCB. Fiquei espantado, pois, na minha cabeça o que interessava era montar um partido em que a maioria realmente detivesse o comando político-administrativo da organização, como lhe assegurasse mais flexibilidade na ação e nas tomadas de decisão. Mais tarde, em conversa com o Humberto Lopes, secretário-político do Partido em Belém, descobri que havia um grande espanto pelo fato d’eu ter conseguido chegar à essência da forma organizativa do PCB sem nunca ter lidado com algo parecido ou similar.
O PCB do Pará era bem interessante em termos de sua composição social, pois, ao mesmo tempo em que tinha uma forte base no Porto de Belém e em algumas pequenas fábricas, estava cheio de pequeno-burgueses. Todos pessoas geniais em termos de solidariedade e capacidade de luta, afinal de contas, o PCB era clandestino e fora-da-lei. Advogados, juízes, médicos, engenheiros, funcionários públicos e universitários compunham o universo organizado da esquerda paraense, embora houvesse a utopia socialista do Cleo Bernardo e grupos que tentavam criar o PCdoB. Uma situação bem esquisita, pois, quase todo mundo conhecia e gostava do João Amazonas, um paraense de boa cepa.
Entretanto, com todas as dificuldades oficiais e oficiosas o Partido tentava agir. O problema é que aquele agir tinha muito de mecanicista e quase um auto-ilusionismo, pois, acontecesse o que acontecesse, todos os informes e documentos do Partido, quase sem exceção tinham como abertura uma frase que ficou famosa: “Mais uma vez foi confirmada a justeza de nossa linha política……”. E isso, mesmo depois de flagrantes e desmoralizadoras derrotas políticas. O erro era dos companheiros ou do Partido? Hoje, várias décadas depois, sei que o erro era da falsidade da concepção política que grassava em todo o mundo, pois, vendo o mundo a partir de uma simples dicotomia entre proletariado e burguesia, não era possível compreender a realidade tal qual ela se mostrava, sendo que em algumas vezes a realidade, coitada, era acusada de tudo. E assim de uma lição ali e outra acolá, a vida corria com a força dos rios que formam a nossa região, mas, que quase sempre nos iludem com a plácida aparência de seus leitos. E eu tentava fazer o mesmo.
É claro que houve algumas namoradas oficiais, só que Belém ainda era uma cidade pequena e todas temiam um compromisso com um famigerado comunista e para piorar sem fortuna ou um grande emprego. Entretanto, já sabia o que era a paixão e a doença, e pressentia o que poderia ser o Amor. Desse modo, treinando para o amor, fui levando a minha vida. Uma vidinha que só foi interrompida quando a minha presença em Belém ficou impossível por questões políticas e aí fui forçado a vir para o Rio também, onde todos os meus familiares já moravam há uns cinco anos, graças às mentiras e intrigas do major Jarbas Passarinho. Uma das mais perfeitas e acabadas toupeiras que já lidei, além de profundamente ambicioso, arrogante e sem ética alguma.
Ele, após ter ordenado a invasão do Sindicato dos Petroleiros e Empregados da Petrobrás à procura de provas de ações subversivas, encontrou o que queria sem muito esforço, pois, segundo o falecido coronel Jefferson Cardim, que era o Chefe do Estado Maior da 8ª Região Militar, sediada em Belém, os documentos tinham sido escritos pelo S2 (a Segunda Secção, o serviço secreto do Exército), comandada por Jarbas. Nesses documentos eu era apresentado como Comandante de um grupo de 15 mil guerrilheiros-camponeses, armados com armas tchecas e soviéticas. Foi aberto um IPM e fui chamado para conversar com comandante da RM, o general Taurino Resende, que fazia questão de me conhecer. A conversa foi bem engraçada, pois, perguntei ao general se ele me conhecia e ele disse que sabia das minhas posições políticas e profissionais (professor, jornalista e estudante de Direito). Perguntei-lhe se me considerava burro, ele disse que não e quis saber porque eu estava fazendo aquela pergunta. Disse-lhe, mais ou menos o seguinte: “General, o ativo das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) na região amazônica não ultrapassava os 5 mil homens em armas (fuzís da 2ª Guerra Mundial). Ora, se eu, comandava e treinava 15 mil homens armados com o que havia de mais moderno e versátil em armas leves, como os fuzís AK47, quem estaria fazendo perguntas a quem ?” O General riu muito e me mandou embora, dizendo que iria atrasar o máximo que pudesse o desenvolvimento do IPM e que mandaria averigüar sobre o que eu tinha dito sobre o Major Jarbas. Aconselhou-me a sair de Belém, assim o major ficaria mais calmo e ele poderia fazer o que estava me dizendo. A bem da verdade, graças aos empecilhos e entraves provocados pelo General e pela Auditoria Militar de lá, só em meados de 1963 é que foi instaurado o processo, em que fui incurso na Lei de Segurança Nacional. Tudo porque o Jarbas acreditava que eu tinha bloqueado a sua possível candidatura ao Governo do Pará pelo PSB, do qual era secretário, em 1960. Um fato que só existia na cabeça e na ambição dele.
O Rio de Janeiro não me era estranho. Volta e meia por ali passava uns dias com meus pais e irmãos. Gostava da cidade e para minha sorte continuava sendo jornalista, além de manter os mesmos afazeres políticos de antes, a diferença era que naquele momento deixara de ser um simples político provinciano para viver sob os holofotes da política nacional. A exemplo de todos, freqüentava Copacabana, Lapa e Ipanema. Comia no Lamas, bebia no Zeppelin e Jangadeiros. Adorava andar de bonde e circular pelo centro da cidade, aliás todos os jornais tinham suas redações ali no centro. Como trabalhava em três – “Última Hora”, “O Jornal” e “Correio da Manhã”, mais familiar o centro me ficava. Hoje, infelizmente, resta pouca coisa daquela fase. Refeito dos antigos dissabores e cheio de otimismo no futuro e no progresso do país, tentava me firmar como jornalista e político.
Creio que só obtive algum sucesso no primeiro objetivo, o segundo tinha muitos embaraços legais e ideológicos para ser uma conquista fácil, mesmo para mim, membro da direção nacional do PCB. Aliás, creio que as maiores dificuldades viriam desse mesmo núcleo dirigente, pois, notara que a maioria estava desgostando da minha “promoção”, por ser, segundo esse grupo, muito jovem e oriundo de uma região inexpressiva em termos político-econômicos. E para piorar tudo, meses depois de estar no Rio, recebi o encargo de dirigir politicamente os grupos do PCB que atuavam na UNE e em todo movimento juvenil do partido no país.
Assim que cheguei ao Rio, apresentei-me no CC, lembro que falei com o Granja e com o Giocondo, que logo me colocaram na Secretaria de Massa para dar apoio como assistente a alguns núcleos da CNTI e metalúrgicos. Não demorei muito por lá, pois, fui chamado para conversar com a Zuleika e o Prestes, sendo logo deslocado para a Secretaria Política da Fração da UNE. Essa “promoção”, ainda que fosse competência e do livre arbítrio do CC, criou-me alguns problemas com certos companheiros no Rio, como ex-responsável pela fração e seus amigos do Comitê Regional, que ficaram irritados em não terem podido discutir sobre nada. A hostilidade do Tonico permaneceu até hoje, embora tenha sido bem aceito pelos demais membros da Fração, como a Ely Diniz, a Aspásia Bandeira, o César Guimarães, o Almir e os diretores da UNE que eram do Partido. Como o meu modo de ser poderia ser considerado “low profile”, sempre com mais ênfase no trabalho coletivo e organizado, aos poucos foi possível o crescimento da importância política do PCB no movimento universitário, tanto que no Congresso da UNE de 1963 a diretoria da entidade ficou dividida em termos iguais e tudo indicava que faríamos o futuro presidente da UNE, o ex-vice-presidente da UNE 62/63, presidente da UEB, Carlos Alberto Oliveira dos Santos.
Janeiro e fevereiro de 1964 voaram e com eles mais e mais ficava sombrio o quadro político. No mês de março estava marcado um seminário de estudos regionais que tinha organizado e providenciado tudo, o I Seminário de Estudos da Amazônia, em Manaus. Embora o quadro institucional apresentasse algumas fraturas, manteve-se o ISEA e assim, eu, o Serra e outros dirigentes da UNE voamos para Manaus, lá chegando no dia 21 de março, sendo que eu já estava por lá.
Pedro,
gostaria de ler uma análise sua, ainda que breve fosse, sobre as conseqüências das ações deletérias deste “luminar militar”, o senhor Jarbas, na des-educação do BRASIL, ao ser guindado a este ministério durante os anos de chumbo.
Beatrice
É difícil qualquer análise sobre os ministérios do Jarbas, pois, como havia um projeto/modelo de país a ser desenvolvido, pouca coisas sobrava para a “criatividade”dos milicos. mesmo àqueles que ousavam se considerar intelectuais e vanguardistas. O projeto era tornar real aquilo que o FHC defendia – a completa transformação da economia nacional em uma espécie de subsistema do que se realizava nos EUA – seríamos um enorme Porto Rico. Assim, todas e quaisquer políticas públicas quanto ao setor Educacional tinham um só objetivo – preparar as estruturas educacionais e o próprio povo para o modelo mercantil que é adotado nos EUA. Os seus demais atos, a exemplo do que se fazia em outros setores, objetivavam destruir e anular todas as possibilidades de uma economia política nacionalista e democrática. O major era apenas um simples major e assim agiu até o fim.
Pedro, estou recuperando a história de vida do José Montenegro de Lima que era do PCB e diretor da Uneti em 63/64 na Guanabara. Você o conheceu? Meu email: dianezifilho@gmail.com. Se me “ouvir” vais me ajudar enormemente. Grato. Vicente Dianezi Filho, jornalista, SP, fone: 11-980797080.