Arquivo do dia: janeiro 31, 2011

Foi assim… – X –

riodejaneiro

A chegada ao Rio foi muito tranqüila. Era a manhã do dia 22 de abril, segunda-feira. Éramos apenas mais uma dupla de hippies endinheirados. Louise-Marie, a franco-canadense, era realmente um achado em matéria de cobertura, pois, como tinha uma bela aparência e uma sofisticada elegância nos modos e trajes, fazia com que só olhassem para ela. No aeroporto, sentados no restaurante do alto, depois de uma certa discussão, acertamos continuar juntos. No meu caso, que ainda a via com profunda desconfiança, estava sem nenhuma alternativa. Se eu a deixasse e ela fosse quem eu pensava que fosse, logo, logo eu seria preso. Portanto, gostando ou não da solução, concordei em que ficássemos juntos. Pelo menos eu teria certo controle sobre ela.
Ficamos num hotel na Praia do Flamengo, o “Novo Mundo”, cujo gerente, Zé Carlos, era um velho amigo meu e com isso eu teria alguma chance de fugir se fosse necessário. Já no hotel, em que só ela preencheu a ficha de hóspede, a minha fingi que preenchia e a entreguei ao Zé Carlos, contei-lhe que talvez precisasse de sua ajuda para poder falar com algumas pessoashotelnovomundo

No apartamento, enquanto arrumava as roupas, expliquei à Marie que ela não poderia me acompanhar no que ia fazer, como visitar a minha família e alguns amigos. Ela concordou comigo, mas disse que depois gostaria que eu fizesse algo para ela. Nem me dei ao luxo de perguntar o que era tal a minha satisfação em poder sair sem aquele penduricalho ruivo. Era preciso ficar sem a presença dela, ainda mais naqueles dias em que o Movimento Universitário estava mobilizado e em luta permanente contra o Governo Costa e Silva por causa do assassinato do estudante Edson Luiz, no Calabouço. Um fato agravado pela repressão do dia 2 de abril, quando a Polícia Militar, a cavalo investiu contra todos os que estavam na Igreja da Candelária.

missacandelaria
A primeira pessoa que procurei foi um amigo e companheiro do CPC, o Antonio Crisóstomo, um jornalista mineiro bem gozador, mas que conseguia disfarçar com seu jeito folgazão uma mente extremamente arguta e ágil, o que lhe garantia ser uma boa fonte. É claro que poderia ter procurado outros, entretanto, como já estava começando a ficar em moda o “desbunde”, uma versão chula e gozadora da nostalgia “existencialista” dos que não foram heróis e sentiam que a História os tinha traído, preferi ouvir alguém que dizia que a nossa função na terra é aprender a não ter ilusões. O importante é que o Antonio, por ser ligado à área cultural, estava por dentro de todas as velhas e novas notícias da esquerda que iniciava o seu rumo para ser a “esquerda festiva”.

zepelin jangadeiro
Segundo o Antonio, havia um misto de vontade de lutar, medo de ser preso e falta de perspectiva. Sintomas que, juntos, provocavam comportamentos bem díspares em várias pessoas – da mais aguerrida visão aventureira, porra-louca, como diziam, às fantasias de realizar o combate a partir das próprias entranhas do sistema. O resultado era um frenesí de reuniões e formação dos mais variados grupos políticos, ora em obediência às tendências que chegavam da Europa ou do América Latina, ora apenas como um meio de garantir prestígio e notoriedade. Eram os percursores dos famosos “chienlits” de 1968.
Soube da grande mobilização popular que estava sendo tentada pelas organizações de esquerda e que o Partido tinha rachado de cabo a rabo. Embora estivesse morrendo de vontade para encontrar alguns dos meus amigos e companheiros, nada disse e nada fiz. Alguns desses fatos eu tomara conhecimento por meio de exilados no Chile e pelos gaúchos que visitavam o Brizola em Montevidéo, o problema era separar o que era anseio pessoal e fato concreto. O principal entrave para o sucesso daquela mobilização redemocratizadora estava na multiplicidade dos “partidos” existentes ou a se formar.
Havia muita vontade de luta e pouca unidade. Embora o assassinato do Edson Luiz tivesse provocado o acirramento de algumas contradições políticas e sociais, na realidade a mobilização que se fazia nas Faculdades, Escolas e meios intelectuais, mais do que enfraquecer o poder militar, servia para tornar bem maior o fosso entre os grupos que dissentiam do Partidão, Ou seja, havia muito palavrório e quase nenhuma prática consistente com a pregação, no fundo exercia-se a mesma prática política dos liberais, apenas com um outro discurso.                 universitariosemluta
Depois de falar com o Antonio, fui visitar a minha família, mostrar que estava bem e que não havia razão alguma para preocupações. Tomado de uma estranha vontade de melhor saber o que se passava, não resisti e fui até a FNFi, onde dei sorte, pois, a primeira pessoa que vi, era um amigo, colega e companheiro, o Oderfla, o fraterno Flafla. Com ele soube da ascenção política do Valdimir Palmeira, do Franklin Martins, do Jean Marc e do Carlos Alberto Muniz, que porfiavam pela liderança do movimento universitário do Rio e davam continuidade ao processo de divisão do PCB. Como estávamos a conversar num pequeno restaurante quase em fente à FNFi, o famoso “bang-bang” – em virtude de suas portas lembrarem as de um saloon dos filmes de far-west -, aos poucos foram surgindo outros amigos e companheiros, como o José Salles e a Marly, dos Comités Regional e Universitário do PCB, mais o Rúben César, o Enílton e o Sérgio Campos da base da Faculdade, que preencheram as lacunas quanto ao irreversível quadro vivido pelo PCB. Era a visão de um determinado segmento, precisava de mais dados.
Foi com essa idéia na cabeça que voltei ao hotel. Para a minha supresa e certo alívio soube que a Marie não estava no apartamento. Tomei um bom e reconfortante banho, não só para me limpar, mas, principalmente, porque é ao banho que sempre tenho boas idéias, deve ser por causa da massagem da água na cabeça, que ativa o meus neurônios. Concluí que o jeito era entrar em contato com a burguesia rebelde. Enquanto me arrumava e me preparava para telefonar, eis que a Marie bate à porta. Como tinha que usar o telefone do apartamento, fui forçado a lhe contar que iria ligar para um amigo e colega do “Correio da Manhã”, o Márcio Moreira Alves (Marcito). O Marcito era deputado e deveria saber das coisas. Ela disse que dessa vez ela iria comigo. Só que cansado da tensão que estava a viver desde Montevideo, preferi marcar a conversa para a tarde da terça-feira, Naquela noite, depois de jantarmos, fomos a um cinema que tinha lá perto, o Bruni-Lido I, na praia do Flamengo. Era um excelente filme do Dino Risi, com Gassman e Jean-louis Trintignant, “Il Sorpasso”, com uma música que até hoje eu recordo, “Quando quando quando”.

praiadoflamengo
O encontro foi na casa do Marcito, como a mulher dele é francesa, e a Louise não me largaria de modo algum, usei-a como álibi para o porteiro, que só entendeu que uma francesa e seu marido queriam falar com o Dr. Marcio e sua esposa, por sinal, também Marie. As duas se deram muito bem e, depois de inteirado dos fatos políticos do país, ao estar me despedindo tive a maior surpresa da minha vida. A Louise se aproximou e calmamente perguntou se ele poderia lhe fazer um favor. Assim como os dois, eu também pensei em coisas bobas, só que o favor era bem diferente do que tínhamos pensado.
Louise precisava entregar uma encomenda para a família do Prestes. Uns milhares de dólares que o PC do Canadá estava enviando por seu intermédio. Abriu a bolsa e para nosso maior espanto, tirou várias pilhas de dólares americanos, cerca de 30 mil dólares. Demoramos um pouco a sair da surpresa, mas, logo em seguida, o Marcito disse que de todos nós, o único que tinha acesso à família do Prestes era eu. Como não havia outra saída, pois, no outro dia voltaria para Buenos Aires, tendo o Marcito como “guia” fomos até a casa de uma das irmãs do Prestes, a Heloisa. Ela ficou espantadíssima em me rever e nos recebeu. Tudo foi feito em menos de quinze minutos. Como a questão da minha segurança era muito importante, nem tive tempo para saber sobre o Prestes, fora saber que estava bem e com extrema proteção. Despedimo-nos e voltamos de taxi para o hotel. 

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Já no hotel, perguntei a Louise porque não tinha me falado daquela sua tarefa e ela simplesmente disse que estava apenas esperando a chance, que ela sabia quem eu era desde o início, graças aos informes do PC argentino. Furioso disse que iria marcar a minha viagem de volta para a quarta-feira pela manhã e agora que ela tinha cumprido a tarefa, o melhor seria que aproveitasse o Rio como turista. Ela disse que não, que eu precisava dela para voltar e que ela sabia o que estava fazendo. Assim, desde aquele momento em diante, ficamos num silêncio total. Um silêncio que só foi rompido em Porto Alegre, quase na chegada à rodoviária. Até hoje não sei se foi a raiva ou certa irresponsabilidade, mas, não consegui prestar a atenção em nada. Passamos pelas aduanas de noite, tudo tranqüilo, só queriam ver nossos documentos e assim, por volta das 11 horas estávamos em Buenos Aires.
Despedimo-nos e pensei que estava livre dela, pois, tinha me dito que seguiria para Santiago no outro dia. Não quis nem saber onde ela estava morando e nem disse o meu endereço. Já em casa, pensando sobre aqueles últimos dias, agora que me sentia seguro, ri muito dos meus medos e da minha desconfiança sobre a Marie. Aproveitei o resto do dia para escrever as matérias prometidas. Matérias que justificariam a minha ausência, pois vez por outra operava como repórter especial. Foram reportagens ricas em informações sobre a movimentação política dos grupos militares brasileiros, de seus aliados oligarcas, empresas muitinacionais e dos partidos políticos que faziam oposição a eles, tudo graças ao Marcito, que não só me fornecera alguns dados sigilosos, como documentos políticos das organizações envolvidas na luta contra a Ditadura. Em linhas gerais o quadro mostrava um país com extrema dificuldade em controlar o processo inflacionário, a despeito dos mentores da política econômica brasileira, adeptos das teses de Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, acreditarem que o simples monetarismo fosse capaz de resolver tudo. O que não estava a acontecer, mesmo com o achatamento salarial e o rígido controle das informações macro-econômicas, além do quase total esvaziamento das atividades sindicais nos setores mais experientes e com tradição de luta.

plazaitalia
No outro dia, como sempre cheguei às 10 horas da manhã, subi e quando fui sentar à minha mesa, vi que os colegas estavam falando com alguém. Fui cumprimentá-los e vi quem era esse alguém. Marie e seus trajes indianos. Por um triz não dei a meia-volta e saí. Palavra que não ficara com raiva dela, mas, ao vê-la me deu uma irritação que foi difícil de esconder. E para piorar as coisas ela tinha dito que era minha noiva e que chegara sem ter tempo de me avisar de sua volta. Nem me lembro direito o que aconteceu depois, só sei que entreguei as matérias, recebi as diárias e como, para todos os efeitos, tinha viajado a serviço, ganhei o sábado e o domingo de folga. Esse dia 26 jamais seria lembrado se não fosse pelo almoço com a franco-canadense.
Como ela estava com as malas todas no hall do prédio e eu precisava dar um jeito naquela confusão, levei-a até em casa e fiquei esperando que se banhasse e trocasse de roupa, o que fez de forma rápida, entretanto, mesmo sabendo que ela era muito bonita, o meu queixo caiu quando a vi vestida em roupas formais. Usava um conjunto mandarim de seda azul, com pequenos desenhos de dragões amarelos nas mangas e ao redor do pescoço, uma gargantilha de lápis-lazúli e mais nada. O efeito era tão deslumbrante que até esqueci que estava zangado com ela. O resultado é que me senti obrigado a tirar a barba e o bigode , além de caprichar no blazer e etc.. Fomos almoçar no indefectível “Continental”, sem favor nenhum, o melhor restaurante argentino e um dos melhores do mundo. Tudo lá era excepcional. Hoje eu sei que a escolha do restaurante teve a finalidade de me exibir e exibi-la. Além de lhe demonstrar que também tinha bom gosto. vieuxMontreal
Pazes feitas, comemos, bebemos e conversamos muito. Soube que era realmente estudante de sociologia e que a sua viagem fazia parte do trabalho que teria de apresentar no final do curso. Estava escrevendo sobre as alterações culturais sofridas pela América Latina com a mudança do eixo de poder metropolitano, agora os Estados Unidos, antes a Grã-Bretanha. Moradora de Montreal e segunda filha de um grupo de 4 filhos de um casal misto ( inglesa e francês). Estava no PC canadense há uns dois anos e tinha muita vontade de nos ajudar contra as ditaduras que estavam se instalando na América do Sul. Assim ficamos até escurecer. Voltamos para casa e como estávamos cansados, fomos dormir, cada um em um quarto. Só que lá por volta das 11 horas da noite, acordei, tomei um novo banho e quando estava abrindo um vinho, ela surgiu e me perguntou se podia me fazer companhia. Fez-me companhia por essa noite e por mais dois anos. Hoje, passado tanto tempo, mais de 40 anos, ao pensar no que aconteceu naquela noite, sinceramente como fico na dúvida se foi mesmo do modo que lembro. Às vezes, como agora, em que tento a maior exatidão possível, sou levado a considerar que também pode ser o produto de uma idealização da própria Marie, dando-lhe características e qualidades de outras. Pouco importa. Na minha memória afetiva o que está gravado é o que foi. Estávamos vestidos para dormir, com pijamas de lã e agasalhos, pois, embora fosse outono, fazia bastante frio. Antes de irmos para a sala conversar, passamos pela copa pegamos mais vinho e cortamos todos os queijos que lá estavam. Na sala, acendemos a “lareira”, na verdade um aquecedor a gás, porém com todo o aspecto de uma autêntica lareira e sentados no chão falamos um bocado. Ela me contando sobre a sua vida em Montreal e eu sobre o Rio, Pará e Buenos Aires. Creio que foi um pouco antes do sol nascer que resolvemos ir dormir e sem que falássemos nada um com outro, demo-nos as mãos no caminho do meu quarto.
É certo que já tínhamos feito amor, mas, naquela noite é que realmente fizemos amor. De início ambos estávamos sem jeito, parecia a nossa primeira vez, em cada toque e carícia ao mesmo tempo em que havia desejo, ternura e carinho, também havia certo receio de machucar, de ferir, de magoar. Assim, só depois de termos feito todas as descobertas possíveis, é que concretizamos o ato. Cansados e saciados ficamos horas nos beijando, até que ela dormiu. Mais tarde, vendo-a dormir em paz e abraçada em mim, senti medo. Medo de não saber como encaixá-la em meus projetos. Medo de amá-la além da conta e de mais tarde magoá-la ou ser magoado. Mas, como ela estava tão linda, terminei por me render ao seu mudo apelo de paz e descanso, beijando-a docemente e quase com vergonha, dormi.
Marie foi uma grande companheira, ajudou-me com a minha família, além de me ter dado a segurança que eu necessitava para fazer o que considerava minha obrigação. Com a ajuda dela, que logo arranjou um emprego na Embaixada do Canadá, maior era a minha facilidade de circulação. Foi graças a esses fatores todos e o cada vez maior conhecimento que adquiria sobre o meu novo país, que realmente assumi o total comando editorial do que fazia. De início tinha certa timidez em fazer algumas modificações e abordagens, mas, graças ao apoio que tinha com a presença afetiva e a extrema visão crítica dela, fiz uma autêntica revolução técnica em termos de redação naquilo que produzia. Como eu gostava do que fazia, era o mesmo que unir a fome, com a vontade de comer.                                                                        

O Cordobazo


Foi com ela que consegui superar o choque e o ódio que fiquei ao testemunhar a loucura do “cordobazo”, 29 de maio de 1969. Quando a conselho de vários amigos peronistas decidi me deslocar para lá, pois, estava avisado de que seriam feitas várias importantes reuniões dos trabalhadores e dos justicialistas.
Sabia que o clima político era o pior possível, pois os comandantes militares e da gendarmeria que estavam sediados por lá eram bem violentos. Foi ali, naqueles momentos de insana violência repressora, que senti a dimensão da grande tragédia que iria se abater sobre a Argentina. Como fazia uns trabalhos free-lancers para jornais e revistas canadenses, pude extravasar a minha raiva e denunciar o crime que tinha presenciado. É claro que coisas parecidas já tinham acontecido antes, mas, como foi a primeira que testemunhei do início ao fim uma violência daquele tipo, marcou-memuito.
Íamos bastante ao Chile. a Montevideo e ao Peru. Ao Chile e a Montevideo para conversar com velhos companheiros e amigos. Ao Peru, mais por ela, para passearmos sobre e sob as ruínas do Império Inca. E por falar nisso, os europeus que me desculpem, mas, não há nada mais bonito no mundo que a Cordilheira Andina. A região dos lagos chilenos, Puerto Mont e Punta Arenas, por exemplo, é tão bela que a gente nem reclamaria se morresse logo depois de conhecê-la. O provérbio “vedi Napoli e puol muori” está equivocado.
Depois de algum tempo, Marie me pediu em “casamento” e disse que gostaria que fosse formalizado no Canadá, pois lá tinha a sua família e queria que seus pais e irmãos me conhecessem. Assim foi feito. O nosso casamento teve como justificativa formal e lógica a necessidade de que eu tivesse o direito de residência e a proteção diplomática de um outro país. Adorei Montreal e a família dela, lugar e pessoas maravilhosas. Fui tratado como um príncipe e só há muito custo consegui voltar para a Argentina. Casamos no verão canadense de 69. Do Canadá descemos por New York e San Francisco, pois, por medida de segurança, eu só viajava na rota do Pacífico. Em cada cidade ficávamos três dias, desse modo, quando chegamos a Buenos Aires, só me restava uma semana a mais de férias. Férias gastas em Neuquén, esquiando, amando e estudando. Eu que sempre gostei dos clássicos do far-west deveria saber que quando tudo está muito calmo, tranqüilo e até sem vento, é sinal de grossa confusão. E ela veio em doses cavalares, sem nenhuma alusão ao  futuro Ministro argentino do neoliberalismo.

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