Arquivo do dia: janeiro 25, 2011

Foi assim…. –VIII-

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Às margens do rio da Prata
O fato é que estava em Buenos Aires, hospedado num apart-hotel , o London Tower, esquina da Florida com Lavalle, recomendado por um colega, Jaime Dantas, que mais tarde seria o correspondente do Jornal do Brasil em Buenos Aires. Era um pequeno, mas aconchegante apartamento, quarto, sala, banhos e copa-cozinha. O que estava me interessando mais era o conforto da calefação interna, tão boa que me permitia andar nu sem sentir nenhum frio. Logo que guardei os meus poucos trens, tomei um banho, fiquei sentado na cama ainda sem crer que estava ali. Telefonei logo para todo mundo no Rio e a todos acalmei, mas, na realidade era a mim mesmo que precisava acalmar e suprimir àquela gostosa sensação de liberdade, pois me parecia ser imoral estar sentindo o que sentia, enquanto a  minha família e os meus amigos estavam preocupados. Vi um pequeno bar e umas garrafas de vinho. Escolhi uma de tinto, acho que era um Norton de 1960. Foi uma boa escolha, mas como há muito tempo não bebia nada, fiquei num copo só.
Como o frio era intenso, cerca de 3ºC, desci até a portaria e perguntei ao gerente em que loja poderia comprar roupas de frio adequadas. Ele, não só me disse onde era a loja, como foi comigo até lá e me ajudou a escolher um sweater, dois pullovers, um cardigan e um sobretudo bem longo. Não é nem preciso contar que saí vestido com o sobretudo e um par de luvas de couro preto. Paramos num café, na esquina da Florida com Corrientes, portanto bem pertinho do LondonTower e ficamos conversando. Soube que era filho de espanhóis republicanos, catalães, antifranquistas ao extremo, que era de esquerda, mas sem nenhum tipo de organização. Contei-lhe a minha situação e assim que acabei de falar, ele então me disse que eu não me preocupasse com o apart-hotel, lá eu poderia ficar o tempo que desejasse sem despesa nenhuma.

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Juro que foi difícil evitar as lágrimas. Bebemos vários capuccinos acompanhados de um licor sensacional o “Tia Maria”, a base de café e oriundo da Jamaica. Voltamos ao hotel e aí é que veio o angustiante sentimento de solidão, ao lembrar que poderia estar  aproveitando melhor aqueles primeiros momentos numa cidade, que em tudo por tudo me lembrava Paris. Bebi mais um copo de vinho e desci para caminhar pelos arredores para aproveitar a luz do dia que ainda perdurava iluminando as ruas. Caminhei por muito tempo, sempre tendo a Lavalle como referência. Deslumbrei-me com a cidade e já estava até a ficar saudavelmente alegre.
Aquele inverno estava sendo muito rigoroso, o que não evitava os meus passeios perambulando pela cidade. E a cada caminhada, mais e mais me adaptava ao clima e à cidade. Já gostava do frio e da cidade nem falar, pois ela me trazia à memória as velhas cidades da Europa e até mesmo de Belém, graças ao formoso conjunto de prédios em art nouveau e art déco que compõem o centro da minha cidade natal. É, pois, desde aquele tempo que gosto de andar pelas avenidas Córdoba, Corrientes, de Mayo e Nueve de Julio, Alvear, Santa Fé, bem como naquelas ruas que margeiam o Congresso. Aos poucos voltava a me sentir mental e fisicamente quase inteiro de novo. Estava tão integrado ao ritmo da cidade, aos seus gostos, ao seu modo de ser que era facilmente confundido com um legítimo porteño.

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Comer, beber em calma e sem pressa. Cinema, livros e teatros foram a minha terapia. Mesmo naquele inverno, adorava sentar nos cafés e ficar olhando as modas. Lia o JB todo dia e fugia dos brasileiros, parte como medida de segurança, parte por detestar a arrogância e a burrice da maioria dos ditos turistas brasileiros. Foram  dias de muito aprendizado e sentimento de cura.  Fiz questão de me preparar para o trabalho, tanto que frequentei um intensivo curso para escrever em espanhol na Universidade de Buenos Aires.  Depois de alguns meses, fiz alguns testes de redação e consegui ser aprovado. Já sabia escrever tal e qual um argentino ou espanhol. Só a fala é que era porteña, como ainda é até hoje.
A Argentina daqueles dias, como aprendi depois, estava ainda a conviver com os efeitos da violenta reação oligarca e imperialista à tentativa peronista de dotar o país de uma estrutura industrial de base que, junto com os meios transportes de massa estatizados e em constante expansão, garantisse os fundamentos para o desenvolvimento e crescimento econômico da Argentina e de seu povo. Como essa política desenvolvimentistas vinha acompanhada de medidas sociais de apoio aos grandes contingentes populares urbanos e rurais, algo que entrava em choque com o tradicional capitalismo por ali aplicado desde o período colonial, foi inevitável o embate.
Uma luta em que o imperialismo estadunidense, fortalecido com a derrota do imperialismo nazifascista, em nome de um anticomunismo mundial – hoje é o terrorismo mundial -, disfarce pelo qual operava no fortalecimento de seu domínio na região, não só derruba Perón, como instalará governos voltados para a desindustrialização autônoma do país e tudo fará para eliminar ou reduzir ao mínimo possível tudo aquilo que fosse direito ou conquista social das massas argentinas. Ou seja, o país vivia uma guerra de ocupação e civil sob a máscara de movimentos políticos. Uma situação que vai se tornando cada vez mais aguda até redundar na loucura dos anos 70/80. artnouveau1
Era, pois, num país altamente envolvido com a “guerra fria” e com a expansão do império militar e econômico dos Estados Unidos que iria viver.      
Como só entendia de política, de economia, de história e de jornalismo, era óbvio que fosse na imprensa a minha procura por trabalho. Fui a jornais e revistas com resultados negativos. Tudo isso no decorrer de quase dois meses. A solução foi tentar pequenos e médios jornais, onde obtive a condição de “free-lancer”permanente, o que me permitiu a legalização do meu status no país, o que só veio a acontecer depois de alguma luta. Um fato só possível pelo esforço de alguns colegas argentinos que decidiram me ajudar no que pudessem e até um pouco mais. Deste modo, já podia pensar com mais calma e até planejar saltos mais audaciosos.
“El Mundo”, “La Opinión” e “Crónica” foram os veículos onde consegui a base para o que faria mais tarde. Um dia, resolvi ser audacioso e pretender melhores vôos profissioansi, mesmo que como “free-lancer”, fui ao “Clarín” com a cara e a coragem. Na recepção disse que queria falar com o chefe-da-redação ou o editor, mandaram-me para redação, onde fui logo encaminhado para o chefe-de-reportagem. Apresentei-me, falei do que estava fazendo em Buenos Aires e o que desejava. Ele ouviu tudo, pediu café para nós dois. Pegou um texto que estava lendo e me perguntou se eu poderia reescrevê-lo em espanhol melhor do que ele estava. Peguei o texto e fiz o que ele queria. Ele leu, riu e disse que se me interessasse eu poderia ser o novo redator temporário do jornal para a área internacional, pois era o máximo que ele tinha para me oferecer.
Aceitei e ao perguntar quando iniciaria, ele disse que ainda precisava falar com o editor, que iria chegar logo. Fui para um pequeno café interno e sentei numa mesa para esperar. Começava a achar que nada iria acontecer quando alguém me pergunta se poderia sentar à mesa, disse que sim. Depois de alguns minutos de silêncio, ele se apresentou, fiz o mesmo e começamos a conversar sobre tudo: política, esporte, arte, livros e viagens. Tudo isso em espanhol, até que depois de pagar a conta, disse-me: Pedro, você está contratado para ser nosso redator temporário, para cobrir as férias de qualquer um. Você pode começar amanhã?

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Mais tarde, um outro colega e amigo argentino se tornará uma peça fundamental para minha tranqüila permanência em Buenos Aires, foi o Rodolfo, dirigente sindical. Com o Rodolfo, mais a cobertura de dois outros, consegui regularizar a minha situação legal na Argentina, de turista para residente. De posse do visto de residente, graças a incrível habilidade do Rodolfo, aluguei um pequeno apartamento em Palermo, lá no parque, bem próximo da Plaza Itália e do Zoológico. Essa mudança de status, de turista para residente aconteceu quase dois anos depois. A atitude desses três colegas e amigos, mais a do Don José, do LondonTower, foi de uma generosidade e fraternidade como poucas vezes vi na vida. 
Há algo muito importante e que mostra o caráter dos três jornalistas. Nenhum deles era de esquerda ou tinha algum pendor para isso.  Só o Rodolfo é que ainda tinha algumas idéias peronistas, enquanto os dois nem isso, quando muito esquerda utópica, mas com um alto sentimento de humanismo. Um outro Rodolfo, também jornalista, que cheguei a conviver nos primeiros anos de 1970 e que me foi muito útil para o meu aprendizado sobre a história política argentina, foi o formidável jornalista, um dos fundadores da “Prensa Latina” e uma das mais brilhantes inteligências que vi no movimento político argentino, era Montonero e que está desaparecido até hoje. O seu nome era Rodolfo Walsh.
Porém, naqueles meses e anos em que convivemos juntos, ora no trabalho, ora nos divertidos almoços e jantares com suas famílias, sempre demonstravam profunda compreensão por meu estado de exilado político e nunca me perguntaram coisa alguma. Com eles e suas famílias recuperei a normalidade de um homem comum. Mais do que colegas e amigos foram a minha nova família e os responsáveis por minha completa recuperação física e mental, inclusive por poder voltar a crer no ser humano. Jamais saldarei essa dívida de amor fraterno, mas eles sempre estarão na minha memória como fundamentais para a minha consolidação como um homem novo. Todos eles, pelos mais variados motivos alegados pela repressão de Videla e seguidores, estão desaparecidos.  De uma coisa eu tenho a mais absoluta certeza, devem ter sido presos porque deveriam estar a fazer o que achavam certo, que era ajudar a quem precisasse, como fizeram comigo.  Grato meus amigos. 

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Mesmo sem querer me envolver muito, aos poucos ia conhecendo o quadro político argentino, sobre a sua história e principalmente acerca do movimento peronista. Um movimento que estava a conhecer pelas mãos de alguns colegas Montoneros. Foi quando vi quase todos os documentários da era peronista. Fiquei fascinado pela personalidade da Eva Perón e como transmitia esse meu entusiasmo por ela, inclusive com afirmações de que ela estava mais à esquerda que Perón, vários foram os que resolveram estudar a vida da Evita  sob esse prisma. Para eles o movimento justicialista (peronista) era um movimento de massas quase sem organicidade, uma característica que eles acreditavam estar se modificando de uns oito anos para cá.  Desse modo, mais e mais porteño eu me tornava. Torcia pelo River, jogava pelada aos domingos e bebia Quilmes de litro. Era o próprio habitante de Buenos Aires. Uma cidade que passei a amar muito. Não só pelo modo como fui recebido e ajudado pelos argentinos, mas, pelo seu modo de ser. Uma metrópole muito cosmopolita e bela, tanto que de acordo com o bairro que estivesse caminhando era e é possível se notar a mudança na arquitetura, nos tipos de comida e de restaurantes e até de gente. Depois que saí  do LondonTower, algo que só foi acontecer em meados de 1968, quando me mudei para Palermo, já não era mais nenhum estrangeiro, sentia-me um bonaerense completo. 
O mais espantoso dentre tantos acontecimentos surpreendentes que me aconteceram por lá, a minha saída do “Clarín” merece ser lembrada. Já estava como redator temporário (uma espécie de free-lancer fixo) há uns oito meses, quando numa manhã fui chamado para falar com o meu editor. Entrei na sala, ele estava em pé e olhando a rua, virou-se e disse que tinha uma informação muito importante a me transmiti. Gelei com a ansiedade de que poderia ser a minha contratação efetiva. Não era, ele logo em seguida me perguntou se eu dominava outros idiomas como o espanhol. Respondi que somente mais duas línguas, o francês e o inglês, embora falasse e lesse bem em italiano e romeno. Riu dizendo que eu não precisava mais voltar ao trabalho, pois iríamos dar uma volta, visitar um amigo dele. Levou-me para os escritórios da Agência Reuters, onde nos esperava um escocês, um dos big-boss da agência. Lá eu descobri que ele estava me indicando e avalizando para trabalhar na agência, onde iria ganhar muito mais do que no jornal, além de me permitir mais liberdade de ação, pois poderia viajar mais amiúde. Era véspera de 7 de setembro.

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