Arquivo do dia: janeiro 8, 2011

Foi assim….-I-

Belém do Pará

belem_do_para - praça do relógio
Foi assim que tudo aconteceu.É um modo clássico de iniciar uma história, seja real ou não, o que importa é o que vai ser contado, principalmente em sua essência histórica. Há muito que sei da importância do tempo, não só em termos da vida biológica de cada um, mas, acima de tudo em sua representação concreta ou idealizada para as sociedades.
Faz tempo, bastante tempo, que tinha decidido contar algumas coisas. Contar antes que se tornassem matéria do esquecimento ou pura fantasia de um idoso com muito tempo de ócio. O presente relato, que tem a forma de uma correspondência entre amigos, pretende preencher essa necessidade. Num certo sentido até há certa correspondência temporal entre os fatos recordados e o mundo real, entretanto, como existem vários pontos que ficaram nebulosos em termos de concreção e memória, a escolha foi pela ficcioninalização desses pontos. Um cuidado bem útil para preservar a intimidade de algumas pessoas e o direito à privacidade de outras. De qualquer maneira, há um rigoroso respeito ao que está disposto no provérbio italiano de que “se non é vero, é bene trovato”.

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O tempo é realmente um portentoso mestre, tanto que só agora consigo ver a grande importância que foi ser filho de uma numerosa família – só de irmãos tenho 6 (2 homens e 4 mulheres), pois, há dois anos que morreu o Carlos, o terceiro depois de mim. Creio que foi esse fato que me educou a ter pouco apego às coisas materiais e me ensinou a ser tolerante, pois, como sou o primogênito e a segunda é mais nova que eu 8 anos, ao lidar e também cuidar daquele bando de crianças fui perdendo o natural egoísmo das crianças.

O resultado é que até hoje ainda mantenho certo comportamento paternal para com eles. Como lá em Belém quase todo mundo morava em grandes casas, com jardins e enormes quintais, para mim foi fácil torná-los meus pequenos parceiros de jogos e brinquedos. Tudo isso durou até a vinda de todos para o Rio de Janeiro com a transferência de trabalho do meu pai, em 1956.Todas as vezes em que relembro a minha infancia, mesmo sabendo que tenho uma memória digna de um elefante, tenho a sensação de que as lembranças são matizadas por uma espécie de sonho ou magia.

Como paraense, aculturado entre quatro tipos de modos de olhar o mundo – o marajoara, o homem do baixo-amazonas, o judeu fugitivo e o cristão quase sacrílego – sempre procurei compreender o meu mundo infanto-juvenil não com a crueza da lógica racionalista, mas, acima de tudo, pelas cores e belezas da imaginação. É impossível fugir desse modo de ser e agir. A própria natureza quase que nos obriga a fazer com que o fantástico e a imaginação tenham a justa preeminência. Hoje em dia, infelizmente, muito dessa magia cultural está a ser destruída. E neste processo de destruição cultural, fica difícil crer e aceitar viver no fabuloso mundo das mitologias indígenas e daquele sincretismo fantasioso que são as lendas herdadas da Europa.

Como a modernidade ainda não tinha destruído àquela lógica fabular e o pouco avanço técnico existente ainda trazia o imagístico estético de dois belos momentos, da Art Nouveau e da Art Deco, era possível sentir a Amazônia, não como um mundo a ser descoberto e explorado materialmente, mas, o conjunto de vários universos mágicos. E por falar nisso, em 2001 estive em Belém por pouco tempo, porém tempo mais do que suficiente para me entristecer com a decadência estética e ética de uma antiga bela cidade. Não houve retrato na parede e nem a clássica recherche du temps perdu que me fizessem lembrar a cordialíssima cidade que deixei em 1962. De nada adiantou flanar pela Conselheiro, tudo estava em ruínas, ora física, ora de abandono afetivo.

Ser paraense ou amazônida é mais do que uma naturalidade, é um peculiar jeito de conviver com a natureza e aceitar os demais seres humanos como integrantes daquele mundão. A minha vida paraense bem que pode ser dividida de acordo com os meus diversos momentos de consciência. Um, o mais antigo creio que se passou entre o meu prematuro nascimento e os meus 6 anos de idade. É uma época que tenho apenas lampejos de memória. Foi a época em que fiquei gravemente doente. Eu estava em Santarém e morava na casa dos meus tios Ninito e Zilah, num bungallow art deco à beira do muro que dava para a praia. Sei que tudo começou quando eu estava na praia, onde fui encontrado desmaiado e com muita febre.

Foi tão ruim que perdi completamente o controle dos meus músculos, não movia nenhum músculo, çreio que não morri graças ao amor e ao empenho de uma irmã da mamãe, a Tia Edith, que além de me massagear e fazer alongamentos, alimentava-me e me contava histórias. Há, no entanto, dois episódios que até hoje são constantes nas minhas lembranças daquele período. Um é referente ao rio, encontraram-me desmaiado na praia, deve ser verdade, pois, em mim ficou a terrível sensação de estar prestes a ser engolido pelo rio. Um outro, que é pouco antes de adoentar para valer, diz respeito a uma brincadeira com os meus primos na casa da minha avó materna, vó Marcolina, que era fazer das manguinhas que caíam um bando de pequenos bichinhos.

Lembro que os meus bichinhos, para fugir dos animais mais ferozes, correram. É engraçado, mas foi tão forte e vivo esse fato que às vezes tenho a sensação de poder revivê-lo. O outro, está ligado à minha recuperação. Uma recuperação espantosa até hoje, pois, nenhum médico conseguiu descobrir o que me atingira. Para uns era paralisia infantil, para outros febre tifóide e uns outros, como a minha avó era dona de uma mercearia e todos nós, os netos, gostávamos de passar por lá, acreditam que fui infectado pelo bériberi, ora causado por fungos, ora por enzimas comuns a alguns peixes de água doce.

É desse período que surge o meu gosto pela leitura e estudos, pois, como não podia me mexer, durante a viagem de volta para Belém, num dos belos navios gaiolas remanescentes do apogeu da borracha, Tia Edith lia livros infantis para mim, como ela tinha comprado uns quatro livros do Monteiro Lobato – História do Mundo para as crianças, Reinações de Narinho, Minotauro e Saci -, não só me mantinha atento como estava me dando um forte estímulo para a recuperação, o que aos pouco foi acontecendo. Como a viagem era lenta, durava cerca de sete dias de Santarém para Belém, porque o navio era movido a lenha e tinha que parar em várias cidades ribeirinhas para pegar as grandes achas de madeira, assim, mesmo com a ajuda do rio Amazonas empurrando, o trajeto demorava um pouco.

Desse modo, sem que eu notasse já podia sustentar a cabeça erecta e movê-la de um lado para o outro. Com isso, Tia Edith resolveu me ensinar a ler, como quase não falava, optou por me ensinar a ler em bloco, usando os livros e desenhos que ela fazia como suporte. Só sei que ao chegar em Belém, sabia ler, embora não soubesse escrever. Era um legítimo semi-analfabeto. Por sorte e ao imenso esforço de todos os meus parentes, principalmente dos meus pais e dessa minha Tia Edith, além de um dedicado médico, Dr. Haroldo Barbosa, obtive uma rápida recuperação, pois, entre o início da crise e até a alta, tudo durou cerca de oito meses.

Tenho certeza de que foi a sedutora magia do universo lobatiano e o apelo para o conhecimento que me deram a força interna para lutar pela vida e pelo bem viver. Creio que foi nessa fase que houve a construção do Pedro de hoje. Como tinha adquirido uma incrível velocidade de leitura e compreensão de conjunto, virei um devorador de livros e com a ajuda da minha Tia fui ampliando o domínio sobre o francês, o espanhol e o italiano. Um conhecimento que seria bem útil quando, depois de bem recuperado, voltei a passar as minhas férias de meio do ano e de fim-de-ano em Santarém, hóspede da Tia Zilah, que ao notar o meu gosto pela leitura comprou toda a coleção do Monteiro Lobato, que devorei de uma só feita.

Porém, o importante é em sua casa havia uma excelente biblioteca, e um Tio, Ninito, Antonio, que aos poucos foi abrindo os meus horizontes intelectuais. Primeiro quando descobriu que eu adorava História e me deu de presente dois livros, um do Will Durant e outro do Cesare Cantú. Embora tenha gostado dos dois, como já estava a ler os clássicos, como Xenofonte, Plutarco e tudo o que fazia parte da famosa Coleção de Clássicos Jackson, o resultado foi certa insatisfação e mais curiosidade. Ora, como Tio Ninito era o que na época se chamava de livre pensador, a sua biblioteca tinha de tudo e assim tive os meus primeiros contatos com Marx, Engels e os socialistas utópicos.

Quando rememoro esses fatos, fico espantado com a minha rápida aptidão para o pensamento dialético. O mesmo fascínio e admiração que tive pelo materialismo histórico e dialético naqueles anos em que a minha infância começava a se mudar em adolescência por força das idéias e da imaginação, ainda existem até hoje. Para mim é sempre um deslumbre ver e compreender os caminhos do ser humano na sua marcha para o futuro. Creio que é por causa dessa imensa emoção intelectual que às vezes me perco tentando deslindar o porvir, que para mim é bem claro, sem prestar atenção de que para os outros não é bem assim.

Se alguém me perguntar qual foi o período mais rico e frutífero da minha vida, a resposta é uma só – a etapa que vai da infância à adolescência. E um lugar tem grande destaque, a cidade de Santarém, no Pará, às margens de dois gigantescos e belos rios, o Amazonas e o Tapajós. Santarém é a cidade da família de minha mãe, que a exemplo de todas cidades da região amazônica, vive do e pelo rio. Até suas “estações” climáticas têm o rio como definidor, quando é época de cheia há o inverno, quando há a vazante é tempo de verão. Como Santarém fica em cima de um pequeno monte, a serra Piroca, as cheias só a afetam nos terrenos baixos, nos demais há um alto muro separando a cidade das praias. Por coincidência, os meses de férias escolares se harmonizavam com esse peculiar regime climático, assim, desde bem pequeno convivi com a força desses dois rios.

Rios que não se misturam. O Amazonas tem as águas turvas, cor de barro e uma força que anualmente redesenha o seu leito, ora movendo ilhas, ora criando outras. O Tapajós é verde, com águas cristalinas e praias de uma areia tão fina que faz chiado quando percorrida. É evidente que preferia sair para conhecer aquele rio que me permitia ver os peixes e outros de seus habitantes, principalmente quando entrava nos lagos que ele criava na cheia e permitia que continuassem na seca. Imagina uma criança vendo e convivendo com aquela exuberância de cores e formas, além do sentido mágico das crenças populares, todas herdadas dos indígenas da região. Aí serás capaz de entender porque me foi fácil compreender a dialética da natureza e dela construir o arcabouço do meu pensar. Era (e é) uma dialética em que há espaço para tudo que acontece na Natureza, seja explicável ou não. É interessante, mas, sempre vivi dividido entre o sentido mágico de encarar a natureza e suas leis, a exemplo dos índios, e a visão racionalista, com nítida vantagem para a magia. Uma magia que me fez suportar várias situações adversas e doridas

Amazônia

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