Foi assim….-III-

centralhotel

Há também a lembrança de um grupo de amigos, o pessoal do “Central Café”, lá no Central Hotel, composto por professores, escritores, poetas e políticos. O meu ingresso nesse grupo foi feito por intermédio da política, pois,  era um dos mais jovens integrantes do PCB, com 18 anos, fui atraído para o grupo por um companheiro e amigo, o poeta Ruy Barata( autor de várias músicas cantadas pela Fafá). Lá reencontrei alguns professores e conheci outros. Foi uma etapa frutífera e prazerosa, num certo sentido a minha real e efetiva Universidade, com graduação, mestrado e doutorado. Foi graças a esses geniais amigos e mestres, como o Benedito Nunes, o Las Casas, Chico Mendes, Napoleão Figueiredo, Raimundo de Souza, que aprendi a ver o mundo e a cultura bem além dos limites do marxismo, além de terem me proporcionado conhecer e me tornar amigo de gente como o Darcy Ribeiro, o Mário Faustino, o Dalcídio Jurandir, o Irawaldyr Rocha, o Joaquim Francisco e outros.

ruibarata Jocelyn Benedito_Nunes
Dentre os meu amigos e companheiros daquela época, houve alguns que sempre foram destacados, seja pela combatividade, talento político e capacidade aglutinadora. O coronel-aviador Jocelyn Brasil, um homem de múltiplas facetas: poeta, compositor, escritor, político, técnico de futebol, comentarista e jornalista esportivo, por exemplo, era um deles. O velho Joça, como afetuosamente nós o chamávamos, era amigo de meu pai e de um outro amigo nosso, o então deputado Cléo Bernardo, que serviu de ponte para a nossa amizade. O Jocelyn era exuberante em quase tudo que fazia, gestos largos, voz potente e alta eram a marca mais visível daquele homem extremamente amigo e afetuoso. Ele também, como não podia deixar de ser, fazia parte da turma do Central.
Mas, como os tempos estavam mudando para pior, tive que vir para o Rio e aí uma outra vida teve início. Uma vida que redundou em alguns anos fora do país. Em 1966 viajei para Buenos Aires e por lá me quedei por quase onze anos. Embora tenha viajado por outras terras e continentes, como os EUA, a Europa, a Ásia e a África, foi na Argentina que fiz a minha base de operação. Foi uma etapa muito criativa da minha vida, pois, por artes da coinciência de estar vivendo numa cidade que tem o mesmo sobrenome que eu, ainda contava com o prazer de todos os dias caminhar pelo tempo, tal a força das arquiteturas Art Nouveau e Art Deco que a gente vê intactas nas ruas, praças, restaurantes, teatros, cafés e bares. Depois de muitas peripécias, deixei-me envolver pelo canto de sereia do Brizola e do Darcy, voltei para o Brasil, primeiro S. Paulo, depois o Rio, que acabei deixando para vir morar no interior do Estado do Rio.
A minha vinda para interior, depois de uma temporada em S. Paulo e mais um período no Rio de Janeiro, teve como principal motivação a extrema necessidade de morar em um local que me garantisse sobra de recursos para sobreviver com alguma dignidade e qualidade de vida. E também porque me deixava bem distante de algumas tentações, como a política tradicional, com o fim do fase Brizola no Rio, compreendi que era quase como um dinossauro. O interior do Estado me deu tudo isso, mais tranqüilidade e ar puro. Hoje, quando tenho que ir ao Rio, palavra que fico contrafeito e irritado.
    Agora vou te contar um pouco da minha vida. Hoje, quando faço o retrospecto de tudo, fico espantado com  que vivi, vi e senti. Pena que não seja cabotino o suficiente para escrever um livro de memórias. Dos meus 17 anos até aos 50 a minha vida foi um grande redemoinho, em que eu não conseguia sair do vórtice. Ora eram questões políticas, ora pessoais.
        Tudo começou com o meu engajamento político como estudante secundarista e depois universitário. Como eu era um bocado CDF em matéria de estudos, feliz ou infelizmente ingressei bem cedo na Faculdade de Direito da Univ. Federal do Pará. Até aí nada de mais, pois, outros também ingressaram, a diferença veio pela minha já intensa participação nas lutas políticas, o problema é que depois veio a renúncia do Jânio Quadros e como tinha alguma experiência, fui um dos que participou da Luta pela Legalidade, inclusive mais tarde indo até Porto Alegre, quando conheci Leonel Brizola.

brizalegalidade
    Foi um etapa bem complicada, pois, tinha que coordenar a minha vida política clandestina com as minhas atividades como jornalista, professor de ensino médio e as viagens que fazia. Num certo sentido até que foi positivo, pois, obrigou-me a fazer das tripas coração para ajustar tudo. Como o Brasil, segundo a maioria dos analistas políticos dizia estava se encaminhando para um acelerado crescimento capitalista autônomo, tudo favorecia as novas(sic) formas de organização política, até capaz de produzir a legalidade para o PCB.
    O resultado foi a estruturação de um forte grupo de esquerda, a organização do PCB no meio universitário e a reformulação da UAP( União Acadêmica Paraense ). Mais tarde, graças ao meu envolvimento na condução de uma greve geral do movimento universitário em prol da Reforma da Universidade Brasileira, fui eleito vice-presidente de Assuntos Nacionais da UNE, gestão 1962/63, de forma bem indireta, quase biônica, por artes de uma manobra política executada com a aquiescência do vice-presidente, o Luiz Oscar Cunha de Toledo, paulista, da Polop, que aceitou me deixar como vice enquanto viajava pela Europa. Uma viagem que só terminou em julho de 1963 . Com isso e mais outros compromissos políticos a minha vida foi um tal de viajar pelo país que quase me deu know-how para ser guia de turismo.
    Um das minhas últimas atividades como vice da UNE foi em Goiânia, maio de 63, quando fomos forçados a suspender um seminário sobre problemas regionais devido aos graves problemas políticos vividos pelo país, problemas gerados pela formidável agitação/pregação golpista do pessoal da UDN, do IBAD e do IPÊS. A minha última ação como vice-presidente da UNE foi em Salvador, Bahia, em junho de 63, quando fui o autor da tese e delegado da UNE no Seminário dos Estudantes do Mundo Subdesenvolvido sobre o tema “Os estudantes e as lutas de libertação nacional”, em que defendia a tese de que a maior contribuição que o mundo subdesenvolvido poderia dar para a Paz Mundial era aprofundar as lutas contra o colonialismo e o imperialismo. O Seminário foi bom, teve a participação de desenvolvidos e subdesenvolvidos, além de alguns políticos baianos e brasileiros, como ACM, Valdyr Pires, San Tiago Dantas e outros.
    Foi nesse Seminário que conheci o ACM, na época um feroz deputado estadual pela UDN, mas semi-aliado de João Goulart. Pelos seus pronunciamentos até parecia que a “revolução socialista” teria início na Bahia e sob a sua liderança. Depois do Golpe de 64, com a mesma veemência, passou a denunciar a todos os seus colegas de bancada e outros. Era mais radical que o mais violento militar, tanto que até o pessoal militar tinha medo dele.       
Entre 1963 e o Golpe de 64, já fora da vice-presidência da UNE, fiquei como assessor-chefe da UNE e do presidente da entidade, o atual senador paulista e ministro da Saúde, José Serra. 1963 foi o ano chave para a minha vida e, infelizmente, para muita gente. Quando o ano começou, nós, da UNE, estávamos com um baita problemão – o isolamento da entidade de sua base social, os universitários e seus diretórios acadêmicos. Por mais fizéssemos isto, isso ou aquilo, em termos políticos e de atendimento a certos reclamos do universariado, como o aumento dos restaurantes universitários e com o direito de clientela para os estudantes secundaristas, seminários regionais para discutir os problemas do Brasil a partir de cada realidade regional e o nosso engajamento na luta pelas Reformas de Base (Reforma Agrária, Bancária, Fiscal e Cambial, por exemplo), a UNE continuava isolada.

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Até que um dia, era um sábado de janeiro, conversando com mais dois diretores da UNE sobre a última encíclica do Papa João XXIII, a “Pacem in Terris”( Paz na Terra), em que abordávamos a importância daquele documento para um novo re-direcionamento da Igreja e de que, mais do que qualquer outro fato, era algo merecedor de um Prêmio Nobel da Paz. Assim pensamos e assim fizemos. Imediatamente mandamos fazer uma grande faixa para ser colocada na fachada do prédio, Praia do Flamengo 132, indicando o Papa João XXIII para o Prêmio Nobel da Paz. O Geraldo Rocha Moraes, vice-presidente e o Mafra, juntos com a Maria Angélica, militante e dirigente da Ação Popular, foram inscansáveis na consolidação dessa proposta. Uma proposta que nos tirou do isolamento e nos deu alento para o que ainda faltava ser feito.
Gastamos o resto do sábado e o domingo em articulações e conversas com o meio eclesiástico progressista (padres Vaz, Cardonnel, Josaphat e alguns bispos novos, como Valdyr Calheiros) e setores laicos da Igreja, mas com grande força como Tristão de Athayde, deputados federais Clóvis Ferro Costa e Gabriel Passos. Na segunda-feira, às 5 horas da manhã colocamos a faixa com o lançamento de João XXIII para o Prêmio Nobel da Paz, muito bem pintada e desenhada pelo Andrei Salvador, já contando com o apoio desse pessoal católico, o que incluía a JUC e a JEC. Foi o fim de nosso isolamento.
        Esse isolamento era o resultado da extrema irritação do meio acadêmico estudantil pelo insucesso da “Greve de 1/3”, àquela greve em que pretendíamos através da participação de 1/3 dos universitários em todos os órgãos colegiados da Universidade como o primeiro movimento para uma ampla Reforma Universitária. Uma Reforma que incluía o aumento dos cursos noturnos nas Universidades públicas como forma de atender à demanda dos estudantes mais pobres, modificação do curso médio (hoje seria o 2º grau) com o seu aumento para cinco anos, com os três últimos anos servindo como referência para o ingresso nos cursos superiores mediante a análise do rendimento escolar global do estudante.
    Uma reforma que, também, pretendia fazer com que os dois primeiros anos na Universidade fossem básicos e comuns a todos, independente do curso a ser seguido depois, pois, acreditávamos que só através de uma educação humanista, universal e regionalizada, ao mesmo tempo, seria possível fazer da Universidade Brasileira um centro de excelência para o pensar e para o fazimento da Ciência. Como a UNE daquela época tinha a sua força extraída da grande massa estudantil organizada em  faculdades e diretórios acadêmicos como expressão dessas unidades escolares, ficar sem os diretórios ou centros acadêmicos era o mesmo que ficar sem ar.
    Com a campanha de indicação do Papa João XXIII para o Prêmio Nobel da Paz, não só saímos do isolamento, como ampliamos o nosso arco social. Pena que o Papa tenha morrido antes de termos conseguido concluir a campanha, pois, se houve alguém merecedor desse Prêmio, esse alguém foi o Papa João XXIII, que já havia brindado o mundo com uma encíclica revolucionária em seu conteúdo de apoio às lutas dos pobres e despossuídos, a “Mater et Magistra” (Mãe e Mestra), de 1961, a instalação do “Concílio Vaticano II” em 1962 e a “Pacem in Terris”, 1963. O Papa João XXIII morreu em junho de 1963.
        Aquele ano foi pleno de confusões e lições. No campo político nacional vivíamos um quadro de extrema agitação política e social desencadeado pela direita e por setores nacionalistas e progressistas da sociedade. A direita, sob o comando de Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Jânio e Ademar de Barros, ostensiva e publicamente financiada pela embaixada dos EUA, chefiada por Lincoln Gordon, fazia de tudo. Criou dois Institutos de Pesquisa para encobrir as atividades da CIA e agrupamentos dos serviços secretos de nossas forças armadas em prol de um Golpe de Estado, o IPÊS (Instituto de Pesquisas Sociais, sob a direção do então Coronel Golbery do Couto e Silva e do então embaixador e banqueiro brasileiro Roberto Campos) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, sob a direção de políticos como Bilac Pinto, Magalhães Pinto, etc..). Com um, o IPÊS, produzia textos “teóricos” de propaganda anticomunista e antinacionalista. Com o outro, o IBAD, desenvolvia as milionárias campanhas políticas de seus filiados e simpatizantes, tanto que na eleição de 1962, só em Minas Gerais elegeu mais de 10 deputados federais.
        Os setores nacionalistas e populares, tal qual hoje, só dispunham da muita vontade, da coragem e da liderança pessoal de alguns políticos, como o então deputado federal do PTB gaúcho, Leonel Brizola. É bem verdade que naquela época o movimento sindical tinha mais unidade e lideranças de grande representatividade organizados na Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), que aglomerava todas as Federações sindicais de trabalhadores e com isso apresentava um alto grau de combatividade e poder de ação reivindicativa. A UNE, novamente forte pela base, tinha grande expressão política, pois, ao mesmo tempo em que lutava por questões específicas, era capaz de mobilizar e ser mobilizada para as grandes lutas democráticas e sociais do povo brasileiro.                                          E assim, esse grupo, composto da CGT, da UNE e da Frente Parlamentar Nacionalista, organizou-se naquilo que ficou conhecido como Frente de Mobilização Popular (FMP), não só como meio de combater ao que era feito pela direita, mas, principalmente, para desencadear uma grande campanha de esclarecimento popular a respeito das Reformas de Base. A nossa campanha teria início em abril/maio de 1964, com comícios em Recife, Fortaleza, Belém, Salvador, B. Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.
        Para piorar o quadro, além das bobagens feitas pelos Sargentos, que se rebelaram em Brasília e do clima de instabilidade militar, com semanais boatos de golpes, a inflação e a carestia minavam os salários dos trabalhadores, que sempre tentavam garantir a reposição dos valores reais perdidos. Greves, insatisfação militar, intensa boataria e propaganda golpista eram o caldo de cultura em que militávamos.
        Para nós, que acreditávamos na necessidade daquelas Reformas como meio de tirar o país do atoleiro do subdesenvolvimento, de ampliar as conquistas democráticas e sociais, de eliminar os resquícios de uma sociedade semifeudal, que era o latifúndio e suas relações de produção, quando aconteceu o que aconteceu, foi um choque e uma perplexidade. Só mais tarde é que foi possível compreender que muitas daquelas teses estavam equivocadas, pois, o assim como a desigualdade regional, o latifúndio também era uma fenômeno capitalista, jamais uma reminiscência semi-feudal. O desenvolvimento que os países latino-americanos podem ter é aquilo que Gunder Frank chamou de o lúmpem-desenvolvimento de uma lúmpem-burguesia.

4 Comentários

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4 Respostas para “Foi assim….-III-

  1. Glecio

    To adorando. Por favor continue o mais breve possivel, a narrativa de fatos que esclarecem o Brasil que vivemos hoje. Os brasileiros desistiram de protestar, deixam tudo acontecer e ficam trancados em casa. Esta na hora de repolitizar este povo. Valeu Pedro.

  2. beatrice

    Pedro,
    o mais lamentável dessa narrativa é que TODAS as propostas da UNE são atuais e necessárias, a Universidade brasileira hoje, em que pese os esforços do Governo LULA de democratizá-la, com o PROUNI e o REUNI, continua e vem até mesmo reforçando sua estrutura arcaica e fundamentalista.
    A extinção das cátedras por ex não contribuiu de fato para corrigir os erros que se agravaram de modo irreversível pós-64.

  3. Beatrice
    O “fenômeno” tem uma explicação bem simples. Enquanto a luta política do estudantado brasileiro (UBES/UNE) naqueles idos se identificava com um projeto nacional de crescimento e desenvolvimento, em que o país e o seu povo eram vistos como um fator único, por força do desmedido poder ideológico do neoliberalismo, principalmente a partir dos fins de 1970, os mais diversos agrupamentos de esquerda do país, ao assimilarem a perenidade do que estava estabelecido, ao invés de lutarem por organizações de massa como haviam antes do Golpe, preferiram lutar por pequenos nichos de poder e de ação. O resultado foi o imoral aparelhismo das entidades e a perda de identidade com quem dizem representar.
    É claro que há soluções, só que a cada movimento que essas organizações realizam, mais e mais divis~poes se processam, o que nos leva a uma pergunta – a quem elas servem?

  4. Glécio
    Muito obrigado pelo incentivo. Sei que há a sensação de que os brasileiros estão acomodados e despolitizados. É verdade e não é. Se levarmos em conta que os brasileiros estão desde abril de 1964 vivendo um permamente estado de lavagem cerebral, que a única liberdade de pensamento é a que permite dizer amém aos ditames imperialistas, verermos que o quadro já está alterado pelo povo. O que nos cabe é tentar ser porta-vozes dessas mudança que o povo está a exigir.
    Grato

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