Foi assim….- II –

Belém do Prá - largo da pólvora

Eu fiquei em Belém até meados de 1962, quando me transferi para o Rio por questões políticas, pois, graças às invencionices criadas e escritas por um major do Exército, Jarbas Passarinho, na época responsável pela Superintendência da Petrobrás, mas chefe do Serviço Secreto do Exército, o S2,  cópia do Deuxième Bureau da França, que envolveu a mim, diversos amigos e companheiros de luta política universitária num mirabolante plano de desencadear guerrilhas na região. O resultado dessa besteira do major é que ao ser aberto um inquérito na Auditoria Militar de Belém, em que seria processado pela lei de Segurança Nacional da época, foi decidida a minha viagem. Desde àquela época que sabíamos que o major era o autor do “plano”, graças ao coronel Jefferson Cardim, então chefe-do-estado-maior da 8ª Região Militar, sediada em Belém, cujo comandante era o general Taurino de Resende.
É claro que foi um certo transtorno, pois, mesmo sabedor de que poderia sair de Belém a qualquer momento, fora da questão da “guerrilha” do Jarbas, esperava ainda ficar mais um tempo por lá. Fora os trabalhos políticos que estava envolvido, tinha a Faculdade de Direito, a minha atividade como professor de História Contemporânea para o clássico e científico de diversos colégios. Enfim, tinha um bocado de coisas que não estava interessado em abrir mão. Mesmo coisas com a maior cara de futilidade, como o meu grupo de amigos do Central Café.

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Nesse grupo, sem favor algum, foi que desenvolvi e ordenei todo o conhecimento que vinha acumulando desde os meus 5 anos de idade. Ano em que aprendi a ler e o primeiro livro que li foi o que marcou a minha vida para sempre “A história do Mundo para as crianças”  do Monteiro Lobato. A partir desse livro, devorei todos os livros do Monteiro Lobato, o que me ajudou a manter sempre aberta a ligação entre o meu pensamento racional e a minha imaginação. Lá no Central Café fiz o mestrado, o doutorado e a superespecialização em Ciências Sociais, Economia, Política, História e Literatura. Além de ter aprendido grandes lições de solidariedade, amizade e fraternidade entre pessoas cuja identificação se dava a partir do gosto pelos estudos, pelo conhecimento, pela beleza e pela política. Entretanto, hoje sei que só consegui aprender e assimilar com inteligência o que ouvia, via, lia e debatia porque tinha tido aquela base humanística e mágica que só o Monteiro Lobato seria capaz de forjar em uma criança.
    A minha relação com Belém ficou truncada, tanto que por lá passei depois de 1964, numa rápida passagem de dois dias em 1965, para obter uns documentos pessoais. Lembro que fui tratado como se tivesse uma doença infetcto-contagiosa por vários dos meus colegas e conhecidos, só o pessoal do Central Café e os companheiros do Partido me trataram com normalidade. O engraçado é que até topei com o Jarbas na rua. Cumprimentamo-nos e já aqui no Rio, semanas depois, soube que ele dizia não ter sabido da minha presença por lá.  Assim, desde aquela data não voltei mais ao Pará por duas razões bem simples, egoístas e quase infantis. Lá no meu íntimo, mesmo sem que eu soubesse, havia a preservação de um tempo, de lembranças e da memória dos jogos que foram me formando gente. Talvez até hajam outros motivos, mas, que eu me recorde mesmo e sinta a pressão deles, foram dois os motivos.Igreja de S. Raimundo
Primeiro, porque desejava reter na memória a lembrança de uma região ainda quase intacta e cheia da magia que só a infância produz. Belém, na minha memória está dividida em três bairros: Telégrafo, Umarizal e Batista Campos. No primeiro, na senador Lemos, aprendi as brincadeiras  juninas, as primeiras histórias fantásticas e de assombrações, bem como empinar papagaio, jogar bola no campo da igreja de S. Raimundo, assistir as vesperais do Íris e a gostar de história em quadrinho, junto com certa mania para inventar brinquedos. No Umarizal, na S. Jerônimo, em frente ao Hospital dos Marítimos, quase esquina da Alcindo Cacela, há aquele momento muito importante para qualquer homem, a descoberta de si mesmo. Ainda que houvesse muita importância nos jogos e brincadeiras típicas dos garotos daquela época, como jogar bola na rua, rolar pião e jogar peteca,  outros ingredientes passavam a fazer parte da minha vida.  Estava no ginásio e com isso, pela primeira vez, era obrigado a pensar que existia muita coisa além das brincadeiras, jogos de bola e cinema.
A minha infância e os primórdios adolescentes tiveram nos rios do Baixo-Amazonas, nos igarapés e igapós de Belém, além de algumas pequenas ilhas componentes do arquipélago de Marajó, não só o seu universo de jogos e brincadeiras, mas a  base de um sentimento mágico que a floresta cria, em que tudo pode ser possível. Desse modo, como não poderia deixar de ser, escolhi ficar com o realismo mágico da memória e da floresta. Vez por outra, quando me permito, deixo a memória voar sem rumo no tempo, sem a menor preocupação com a cronologia ou estrito relato fatual. Uma das coisas que mais me intriga hoje em dia, é lembrar que junto com amigos atravessava o igapó que ia da São Jerônimo até à Pedreira sem pisar em lama nenhuma. 

Igapó
Belém e a Província do Grão-Pará  sempre viveram fora do Brasil, tanto que sua colonização e administração foram feitas diretamente pela Coroa Portuguesa. O Pará e Belém eram um novo Portugal, Santarém, Monte Alegre, Bragança, Óbidos, Alenquer, Vigia e Viseu, por exemplo, nomes comuns lá e cá. Quando o Pará ingressa realmente na História do Brasil, o faz através de uma guerra civil popular, a “Cabanagem”. Que ao ser vitoriosa pelas armas, é derrotada pela cooptação de seu líderes. Mesmo assim, ainda ficou bastante forte o sentimento isolacionista. 
É aí que entra a importância do ciclo da borracha, uma importância cultural várias vezes superior ao valor econômico daquele período. Embora tivesse nascido em Belém, em que harmoniosamente se mesclavam as influências do final do barroco português,  caminhando para o ecletismo, para o neoclássico e à Art Nouveau da nova era industrial, só fui sentir a força dessa influência ao me aproximar da fase adulta. Foi quando comecei a compreender o peculiar modo de ser e de pensar dos meus contemporâneos. Creio que foi nessa fase, ainda próxima da adolescência, que houve a grande transformação em meu modo de pensar. Um modo de pensar que hoje sei que é uma extensão da magia e encantamento vividos antes.
Para os paraenses era mais fácil e normal estudar na Europa que no Sul do Brasil. Era manter uma tradição, em que Montpellier, Cambridge e Coimbra eram mais do que simples  nomes, autênticas extensões de  práticas familiares. Um comportamento que perdurou até os anos 50 do século XX . 
Com o Golpe de 1964, fora a violência institucional e prática, houve o desmonte de quase tudo aquilo que nos tinha mantido como identidade específica e própria. Belém, continua uma cidade bonita, mas, para mim, parafraseando Drummond, nem chega a ser um retrato na parede. Era impossível reagir à “miamização” política, urbana e lógica dos novos tempos. Bom gosto, cultura humanista, solidariedade e identidade cultural própria fazem parte de tudo o que foi considerado como lixo histórico pelo novo poder.

1 comentário

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Uma resposta para “Foi assim….- II –

  1. beatrice

    Pedro,
    rendo aqui meu reconhecimento pela sua análise de como todos guardamos na memória elementos da infância dos quais relutamos em nos desfazer.
    A parte disso, quero sublinhar a exatidão do termo “miamização” e me pergunto mesmo se tal processo não ocorreu com o país como um todo, o que explicaria em grande parte o vazio humanista das gerações seguintes até o presente.

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